FERNANDO ALONSO

O FAROL

Ficar em pé, mesmo quando o mundo não pede mais.


Nota de Inspiração

Este livro não nasceu de uma ideia. Nasceu de um estado.

O Farol surgiu durante um tempo em que me vi parado — não por preguiça, mas por esgotamento; não por desistência, mas por uma espécie de suspensão interna. Eu não sabia se estava esperando por algo, resistindo a algo ou apenas tentando continuar. E foi então que imaginei esse homem, num lugar sem testemunhas, acendendo uma luz todas as noites, sem saber se ainda havia alguém lá fora para vê-la.

O farol, para mim, sempre foi mais do que uma torre. É uma metáfora. Da constância. Da repetição. Do cuidado sem plateia. Escrevê-lo foi como viver uma vigília. E talvez cada capítulo tenha sido um degrau que precisei subir para acender algo dentro de mim.

Se você chegou até aqui, talvez também esteja tentando manter uma luz acesa em meio à própria escuridão.

Espero que, de algum modo, esse livro tenha vigiado ao seu lado.

Nem que por uma noite só.


Prefácio

Há livros que gritam, que sacodem, que exigem atenção.

E há livros que sussurram. Que chegam devagar, como o som do mar à noite, como o ranger de uma escada de madeira, como uma luz que gira sem pressa no alto de um farol solitário.

Este é um livro do segundo tipo.

O Farol não tem pressa. Não tem explosões. Não traz verdades reveladas ou finais espetaculares. Ele caminha ao lado do leitor como quem acompanha uma vigília. Fala de silêncio, mas não de vazio. Fala de rotina, mas não de ausência. Fala, sobretudo, da dignidade de continuar — mesmo quando não há ninguém olhando.

Talvez você se veja neste farol.

Talvez conheça alguém que há anos segura o mundo sem poder reclamar.

Talvez perceba que manter a luz acesa também é uma forma de existir.

Este não é um livro para entender.

É um livro para permanecer.

Boa leitura.


CAPÍTULO 1

A VIGÍLIA

O vento chegava primeiro, antes mesmo que o dia abrisse os olhos. Era sempre assim. Vinha rasgando o escuro com aquele assobio fino que passava pelas frestas das janelas mal vedadas, como um aviso antigo de que o tempo ali não era feito de horas, mas de recomeços. Trazia consigo o gosto salgado do mar, o cheiro de coisa velha e molhada, e o rumor constante das ondas se quebrando lá embaixo, nas pedras, como se o mundo repetisse a mesma frase em voz baixa há séculos. Havia uma solidão úmida que se entranhava nas paredes, no colchão, nos ossos. Mas ele já não notava. Ou se notava, aceitava como se aceita a ferrugem nos portões ou os estalos da madeira à noite.

A casa onde morava — se é que aquilo ainda podia ser chamado de casa — era uma construção baixa, torta de cansaço, encostada numa encosta que descia em curva até encontrar o mar. Era feita de pedra, cimento e silêncio. Tinha dois cômodos: um para dormir e outro para viver, embora viver fosse palavra grande demais para o que se fazia ali. O teto vazava em dias de chuva mais brava, e o fogão de lenha ameaçava morrer todas as manhãs antes do café, como um velho que não aceita mais acordar. E ainda assim, havia dignidade naquele espaço. Uma dignidade rude, feita de hábitos e de não desistir.

Ele acordava todos os dias no mesmo horário, mesmo sem ter relógio. O corpo sabia. Não precisava de despertador quando o mundo era medido pela rotação do farol. Primeiro, sentava-se na beirada da cama e ouvia os próprios ossos se queixarem do peso dos anos. Depois, lavava o rosto na água fria da bacia, calçava as botas com a cadência de quem já não corre, e só então acendia o fogo para o café. Nunca tomava o café quente. Quando finalmente se sentava para beber, ele já esfriara. Era assim que ele gostava. Ou talvez fosse apenas como havia aprendido a aceitar as coisas: mornas, silenciosas, inevitáveis.

A porta que dava para fora era de madeira pesada, antiga, e rangia sempre que se abria, como se cada manhã fosse um esforço para o mundo continuar. Do lado de fora, o farol erguia-se como um monólito pálido, impassível diante do tempo. Era alto, redondo, com as paredes brancas descascando em algumas partes, deixando à mostra cicatrizes de maresias passadas. Às vezes ele acreditava, com um certo constrangimento, que o farol o observava também. Não com olhos humanos, claro, mas com aquela luz intermitente, insistente, que girava mesmo quando não havia ninguém por perto. Havia dias em que isso o assustava. Outros, confortava. Talvez fosse essa a função de um farol: não perguntar, não julgar, apenas continuar aceso.

Ninguém mais o chamava pelo nome. Nem ele mesmo. Fazia tempo que o nome havia deixado de servir. Nome era coisa de quem ainda precisava se apresentar ao mundo. Ali, bastava existir. Quando muito, respondia às cartas da Marinha com uma rubrica sem assinatura, apenas para confirmar que a luz seguia funcionando e que a estrutura ainda resistia às tempestades. Não havia inspeções frequentes. De tempos em tempos, um barco deixava algum suprimento, uma caixa com velas, sabão, arroz, café e óleo. Era o suficiente. Mais do que isso lhe causaria desconforto.

Todas as noites ele subia os degraus em espiral até o topo, com a lanterna na mão e a respiração marcada pela memória do esforço. Conhecia cada curva daquela escada, cada degrau que rangia mais que os outros. Conferia os mecanismos, limpava os vidros com cuidado, ajustava os ponteiros internos, e por fim, esperava o instante exato em que o céu escurecia para acionar a luz. Era um ritual. E ele o fazia com a mesma reverência de um monge acendendo velas num templo esquecido.

Sentado no parapeito externo, do lado de fora da cúpula de vidro, costumava observar o mar. Não havia muito o que ver, na verdade. Apenas escuridão, pontuada pelo som dos ventos e pela própria luz que girava atrás dele. Ainda assim, ele olhava. Como se estivesse à espera de algo. Um navio, talvez. Um milagre. Um sinal. Nunca soube exatamente o quê. Às vezes imaginava se ainda existiam embarcações naquela rota. Se havia algum comandante perdido em águas frias, que ao enxergar o feixe da luz, pensasse: “Estamos salvos.”

Talvez não houvesse ninguém. Talvez ele fosse apenas o guardião de uma metáfora que já perdera o sentido. Mas não importava. O farol acendia. E ele também.


CAPÍTULO 2

Dias Iguais, Marés Diferentes?

As manhãs seguiam com a mesma composição de sons e ausências. O vento batia nas janelas com uma teimosia ancestral, as gaivotas gritavam seu desespero antigo por cima das pedras, e a chaleira assobiava antes mesmo de ferver. Do lado de dentro, tudo era igual. A mesma cadeira com as marcas de uso, a mesma colher que girava o café sem pressa, o mesmo silêncio que preenchia os vãos entre os objetos como se fosse cimento invisível. Mas havia algo que começava a falhar no teatro da repetição. Algo minúsculo, quase imperceptível — como um sussurro diferente no meio de uma música muito antiga.

Ele começou a notar as variações. Primeiro, foi o cheiro. O ar da manhã não tinha o mesmo sal de antes. Era como se o mar tivesse mudado de humor durante a noite e decidido exalar outra versão de si. Depois, percebeu o som das ondas mais roucas, menos rítmicas. A maré, talvez. Ou talvez fossem apenas seus ouvidos que envelheciam, recortando os sons de forma desigual. Mas o que mais o incomodou — ou encantou, ele ainda não sabia dizer — foi o fato de o céu parecer mais baixo em certos dias. Como se a linha do horizonte tivesse cansado de ser tão distante e resolvido se inclinar para perto.

Sentado na beira do rochedo, ele encarava o infinito com olhos opacos, mas atentos. Já não buscava navios. Nem respostas. Olhava porque era o que lhe restava. O mar, aquele mesmo mar de sempre, parecia outro. Mudava de cor sem avisar. De manhã, era cinza-névoa. À tarde, verde-sujo. Em alguns momentos, tornava-se azul profundo como se quisesse lembrar que ainda era bonito. Isso o desconcertava. A beleza repentina das coisas incomodava mais do que o tédio. Porque a beleza, ao contrário do tédio, tem o poder de acordar o que estava adormecido. E ele não sabia se queria despertar.

Os pássaros começaram a chegar em bandos diferentes. Eram menores, mais rápidos. Vinham de direções novas, faziam ruídos que ele não conhecia. Alguns pousavam no telhado do farol como se o estivessem inspecionando, medindo o tempo de vida daquela estrutura. Ele passou a acompanhá-los com um certo receio, como se fossem mensageiros de algo que ainda não se revelara. Um deles, marrom e solitário, começou a aparecer sempre no mesmo horário, empoleirado na janela da cozinha. Observava-o com uma calma perturbadora. Era como se o vigia fosse ele.

Dentro de si, ele percebia as mesmas alterações. Pequenas rachaduras na armadura do hábito. Certas noites demoravam mais para passar. Certos objetos pesavam mais ao serem tocados. A colher de madeira, por exemplo, parecia mais grossa na mão. A escada do farol mais longa. O colchão mais fundo. Era como se tudo ao redor estivesse sendo discretamente ampliado, enquanto ele encolhia. E havia o espelho. Pequeno, oval, pendurado por um fio torto acima da bacia de água. Um dia, ao se olhar, não se reconheceu. Não porque tivesse mudado, mas porque pela primeira vez em muito tempo, olhou de verdade.

As marcas no rosto estavam mais fundas. A barba crescia de forma desigual. Os olhos não pediam mais respostas — pediam descanso. Ele tentou sorrir para si mesmo. Um ensaio de humanidade diante do próprio reflexo. Mas o sorriso não veio. Ou veio torto, como uma tentativa de lembrar como era. Sentiu vergonha e desviou os olhos. Pensou em quebrar o espelho, mas depois achou melhor deixá-lo ali, como um lembrete de que ainda havia alguém dentro daquele corpo.

Mais tarde, naquele dia, subiu ao farol com um passo hesitante. Parou no meio da escada e olhou para cima. A luz estava desligada, ainda era cedo. Mas havia algo naquela pausa que o atravessou. Não era cansaço. Era consciência. A escada, o farol, a luz — tudo parecia parte de uma coreografia que ele vinha repetindo sem saber por quê. A dúvida não era nova, mas a clareza era. E isso bastava para inquietar.

Quando chegou ao topo, abriu as janelas circulares e deixou o vento entrar com força. Ficou ali, parado, olhando o giro da estrutura metálica, como se esperasse que ela dissesse algo. A luz ainda não estava acesa, mas ele a imaginava pulsando, rodando devagar, marcando o tempo em círculos. E naquele instante, ele entendeu algo que não sabia dizer com palavras: mesmo que tudo pareça igual, o mar nunca é o mesmo. E talvez, só talvez, ele também não fosse mais.


CAPÍTULO 3

Coisas que Não Se Dizem

As palavras não morrem. Ficam encostadas em algum canto da casa, como poeira sobre móveis que ninguém mais limpa. Algumas ele ainda lembrava. Outras, não tinha certeza se eram reais ou apenas vozes criadas pelo cansaço. O fato é que havia coisas que nunca foram ditas em voz alta, mas que ainda assim permaneciam ali, empilhadas entre os utensílios da cozinha, nos cantos da cama, nas frestas do assoalho. Como umidade que não se vê, mas apodrece por dentro.

Ele não falava sozinho. Ao menos não em voz alta. Mas mantinha diálogos inteiros dentro da cabeça, com gente que já não estava mais ali. Algumas dessas vozes vinham nítidas, com timbre e respiração. Outras, vinham só como intenção: como se soubesse o que a pessoa diria, mesmo sem ouvi-la de fato. Havia uma mulher. Não lembrava mais do rosto, mas sabia como ela ria. Às vezes, quando o vento passava de um certo jeito pelas vidraças, ele quase ouvia aquele riso ecoando no farol, como se a vida estivesse rindo dele por ainda acreditar em lembranças que não se deixam pegar.

Nunca escreveu sobre ela. Não sabia como chamá-la. Nem quando começou, nem quando terminou. Era mais um sentimento suspenso do que uma história com começo e fim. Talvez nem tivesse existido. Talvez fosse só uma projeção, um desejo de companhia moldado pela solidão. Mas o corpo lembrava. A memória, essa covarde, fingia esquecer, mas o corpo não. O modo como ele ainda virava para o lado esquerdo da cama, mesmo dormindo só há anos. O modo como evitava certas músicas, certos cheiros. O modo como seus dedos hesitavam ao tocar na aliança esquecida no fundo da gaveta, como se ela ainda queimasse.

Tinha também o menino. Não sabia o nome, mas às vezes sonhava com ele. Nos sonhos, o menino corria pelas escadas do farol como se aquele lugar fosse um parquinho. Trazia nos olhos uma curiosidade feroz, como se fosse possível compreender o mundo apenas subindo mais alto. Ele o seguia com dificuldade, rindo, tentando alcançá-lo. Mas o menino nunca parava. E quando o sonho terminava — sempre no mesmo ponto, no topo do farol, com o menino olhando para o mar — ele acordava com o coração disparado e uma pergunta na garganta: e se?

Nunca respondeu. Nem para si. O farol não era lugar de respostas. Era lugar de permanência. De vigiar sem saber o que se espera. E talvez fosse por isso que ele ainda estivesse ali: por não ter tido coragem de ir embora antes que a pergunta se apagasse por completo. Havia algo de covarde nisso, ele sabia. Mas também havia uma certa beleza em ficar. Em manter acesa uma luz para alguém que talvez nunca mais venha.

Naquele dia, limpando os vidros do farol, ele encontrou uma marca. Um risco circular, quase imperceptível, que o sol revelava sob certo ângulo. Passou o pano várias vezes, achando que era sujeira. Mas o risco permanecia. Era como se alguém — ou algo — tivesse deixado ali um sinal de que o tempo passava. Um lembrete de que nem o vidro escapava do toque das horas.

Parou o gesto, apoiou a mão na estrutura e olhou ao redor. O mundo continuava. O mar, o céu, os pássaros. Tudo ali. Tudo igual. Mas dentro dele, algo tinha se movido. Uma sensação estranha, como quando se encosta numa fotografia antiga e sente vergonha de si mesmo, por ainda guardar aquilo. E então, pela primeira vez em muito tempo, ele disse em voz alta uma frase que nem sabia que estava guardada:

Não sabia pra quem. Nem por quê. Mas disse. E o eco que voltou não o assustou. Soou mais como companhia.


CAPÍTULO 4

A Carta Nunca Enviada

A decisão não foi tomada. Aconteceu. Uma tarde mais cinzenta que o comum, a névoa mais espessa que o costume, e o som das ondas um pouco mais lento, como se o mar cochilasse. Ele olhou para a mesa e viu o caderno, fechado há anos, e a caneta, jogada de lado como uma testemunha esquecida. Estavam ali há tanto tempo que já pareciam parte da mobília. Mas, naquele dia, ele os enxergou. E isso bastou para que algo se movesse por dentro.

Sentou-se com o cuidado de quem se aproxima de um animal ferido. Não porque estivesse fraco, mas porque sabia que aquele gesto tinha poder demais. Abriu o caderno com uma lentidão quase cerimonial. As páginas estavam amareladas nas bordas, algumas coladas pelo tempo, outras riscadas com palavras que não faziam mais sentido. Escrevera ali antes, anos atrás, mas em outro idioma emocional. A mão agora era a mesma, mas o homem não era.

Pegou a caneta, testou sobre um canto da folha, e ela ainda funcionava. Era estranho. Tudo ali parecia suspenso no tempo, mas ainda pronto para servir. Escreveu a data. Sem certeza do dia exato. Colocou apenas o mês e o ano. Era o bastante. Depois, hesitou. Olhou para fora, para o farol, como se esperasse algum sinal. Mas não havia sinal. Nem brisa. Nem pássaros. O mundo havia prendido a respiração.

Começou a escrever.

Foi assim que começou. Uma confissão de inutilidade. Mas também de verdade. Ele sabia que aquela folha não sairia dali. Que não haveria selo, nem envelope, nem correios. Mas precisava escrever. Não para ela — quem quer que ela fosse —, mas para ele mesmo, que já não sabia mais quem era.

As frases vieram aos poucos. Esparsas. Com erros, rasuras, repetições. Não se preocupou em parecer lúcido. Escreveu sobre o tempo, sobre as coisas que havia deixado para trás, sobre a sensação de estar sempre esperando por algo que nunca chega. Confessou medos que nunca disse em voz alta. Confessou cansaços. Falou sobre o barulho dos ossos ao subir a escada do farol, sobre o café que nunca esfria no tempo certo, sobre os sonhos que vêm com rostos desfocados. E em algum momento, escreveu: “Eu não fui embora. Mas também nunca fiquei.”

Parou ali.

A caneta escorregou da mão. Olhou para a folha, não como quem lê, mas como quem encontra um espelho em meio ao entulho. Sentiu vergonha do que havia escrito. Depois sentiu orgulho. Depois não sentiu nada. Dobrou o papel com cuidado, como se aquilo fosse um objeto sagrado, e o colocou dentro de uma gaveta que não abria há anos. Não trancou. Apenas fechou. Sabia que não voltaria a abrir. Mas também sabia que aquela carta não precisava ser lida. Bastava existir.

Levantou-se devagar, como se tivesse envelhecido mais um ano naquele instante. Foi até a porta. Do lado de fora, o vento voltara. O farol também. Girando, teimoso, indiferente. E ele sentiu, pela primeira vez em muito tempo, uma pontada no peito. Não era dor. Era um tipo de leveza melancólica. Como quando se chora sem lágrimas. Como quando se fala com alguém que já partiu, mas se ouve a própria voz como resposta.

A carta nunca seria enviada. Mas estava escrita. E isso, por si só, já era um começo.


CAPÍTULO 5

Visitas Imaginárias

Começou com passos.

Pequenos, leves, ritmados, como os de uma criança descalça atravessando o assoalho. Ele estava sentado à mesa, mexendo o café já frio, quando os ouviu pela primeira vez. Não olhou de imediato. Nem se assustou. Apenas parou o movimento da colher, ergueu levemente os olhos e esperou que o som se repetisse. Mas não repetiu. Era como se a casa tivesse testado a própria voz e, constrangida, voltasse ao silêncio.

Nos dias seguintes, vieram outros sinais. A escada de madeira estalava à noite de um modo diferente. O cheiro do quarto mudava ao amanhecer, como se alguém tivesse estado ali e partido antes que ele acordasse. Uma caneca fora do lugar. Um pano de prato dobrado de outra forma. Pequenas incongruências que, somadas, criavam a sensação de presença. Não era medo o que sentia. Era quase companhia.

E ele, de forma quase infantil, deixou-se levar.

Passou a preparar dois cafés. Um para si, outro para a ausência. Colocava a caneca no outro lado da mesa, não falava nada, não perguntava nada, apenas bebia em silêncio como quem divide a manhã com alguém que já soube escutar. Em certos momentos, desviava os olhos da xícara e sentia — não via, mas sentia — que alguém o olhava de volta. Um olhar calmo, paciente, como quem não tem mais pressa de existir.

Às vezes, a visita era mais clara. Uma silhueta no topo da escada do farol. Um vulto atravessando o campo de visão enquanto ele limpava os vidros. Um perfume conhecido que se espalhava de repente pelo quarto. Ele não fugia. Também não investigava. Aceitava. Como se já tivesse vivido aquilo antes, numa vida esquecida ou num sonho antigo. O mais estranho era o conforto. Não havia inquietação nas visitas. Havia um tipo de ternura espectral que tornava os dias menos pesados.

Começou a esperar por elas. Deixava a porta entreaberta. Acendia o fogo mais cedo. Mantinha a casa mais arrumada, como se quisesse impressionar alguém que talvez já o tivesse amado, ou talvez ainda o amasse do outro lado da realidade. E foi nesse ponto que a memória começou a se confundir com o desejo.

Certa noite, antes de subir ao farol, achou um livro sobre a cama. Um dos poucos que ainda restavam ali, com páginas soltas e capa desbotada. Tinha certeza de que estava na estante. Mas lá estava ele, aberto numa página onde um trecho dizia: “Nem toda ausência é falta. Algumas são apenas formas mais sutis de presença.”

Leu a frase três vezes. Sentou na cama. Passou os dedos sobre as palavras como se tateasse uma cicatriz.

Naquela noite, fez o que sempre faz, acendeu a luz do farol. Mas ficou ali, parado no topo, olhando o mar escuro e esperando. Tinha a sensação de que alguém viria. Que os passos voltariam. Mas tudo permaneceu quieto. Apenas o vento. Apenas o som das ondas. Apenas ele.

Ainda assim, quando voltou para casa, sorriu. Pela primeira vez em muito tempo, sorriu. Porque havia aprendido a conviver com o vazio como quem recebe uma visita que não se vê, mas sente. E dormiu, com a porta entreaberta, como quem sonha que alguém talvez entre, mesmo sabendo que não vai entrar.


CAPÍTULO 6

O Barco Fantasma

O céu amanheceu turvo, como se tivesse dormido mal. Nuvens baixas roçavam a linha do horizonte e apagavam a divisão exata entre mar e céu. Era como se o mundo tivesse sido coberto por um cobertor de lã grossa, cinza, que abafava os contornos e deixava tudo mais lento. O vento, diferente dos dias anteriores, vinha de sul, carregando consigo uma umidade densa, quase pastosa, que fazia as janelas embaçarem por dentro. Ele esfregou o vidro da cozinha com a manga da camisa, abriu uma pequena fresta para arejar, e logo se arrependeu — o frio entrou como se tivesse sido convidado.

Preparou o café com mais atenção. Moera os grãos na noite anterior, manualmente, como fazia às vezes quando sentia necessidade de lembrar que ainda tinha mãos, músculos, ritmo. Era um ritual quase litúrgico: o som seco das pedras moendo os grãos, o cheiro abrindo caminho pela casa, a água quente sobre o pó como uma oferenda sem altar. Bebeu devagar, em pé, observando o mar através do vidro manchado.

E então viu.

Era uma sombra. Primeiro uma mancha escura, indistinta, balançando com a ondulação, pequena demais para ser um navio, mas grande demais para ser um tronco. Aproximou-se da janela, apertou os olhos, encostou a testa no vidro. A coisa estava lá. Flutuando. Lentamente. Deslocando-se na direção da enseada, como um segredo que resolve vir à tona sem urgência.

Saiu da casa e foi até o parapeito do rochedo. O vento cortava com agressividade agora, empurrando as nuvens num movimento horizontal, e a claridade começava a abrir pequenas brechas no céu. O objeto estava mais visível: era uma embarcação. Pequena, de madeira, escura, sem bandeira, sem som. Não havia fumaça, nem luz, nem sinal de gente. Apenas a casca da coisa deslizando em silêncio.

Havia algo de profundamente errado naquela imagem. E ao mesmo tempo, algo de profundamente familiar. Ele conhecia aquele barco. Ou achava que conhecia. Não pelos detalhes, mas pela sensação que trazia. Era como quando se sonha com um lugar e, ao acordar, se descobre que ele existe — mesmo que nunca se tenha estado lá.

Desceu até o galpão onde guardava os binóculos antigos. Eram pesados, com couro descascando nas bordas, lentes gastas pelo sal. Mas ainda funcionavam. Subiu com eles até o topo do farol, abriu as janelas da cúpula e fixou a visão. O barco estava parado agora. Não havia âncora. Não havia movimento. Apenas flutuava ali, como se esperasse alguma coisa.

Procurou por sinais de vida. Nada. Nenhum vulto no convés. Nenhuma movimentação nos mastros. Era um barco mudo, cego, suspenso. Começou a imaginar coisas: corpos à deriva, uma tripulação desaparecida, uma embarcação abandonada pela pressa ou pelo pavor. Mas o que mais o inquietava era o sentimento persistente de que aquilo tinha a ver com ele. Como se o barco não estivesse apenas ali — estivesse vindo.

Para ele.

Ficou horas observando. O sol cruzou lentamente o céu, as nuvens se dissiparam, as gaivotas voltaram aos gritos habituais. Mas o barco não se moveu. Nem recuou, nem avançou. Continuava ali. Presente como uma lembrança indesejada.

Ao entardecer, desceu do farol e voltou à casa. Tentou comer algo, mas não conseguiu. Sentou-se diante do caderno onde escrevera a carta dias atrás. Pensou em anotar o ocorrido, mas parou antes da primeira palavra. Não era algo que se escrevia. Era algo que se sentia — ou se suportava.

Ao cair da noite, voltou ao rochedo. O barco já não estava lá.

Olhou por longos minutos, tentando encontrar algum traço, uma vela, uma mancha no mar, qualquer vestígio. Nada. Aquilo não era um delírio. Também não era uma visita. Era um lembrete.

De que algumas coisas vêm.

Mesmo que não toquem a terra.

Mesmo que não tragam ninguém.

Mesmo que não deixem rastro.

E naquela noite, ao acender a luz do farol, ele o fez com uma solenidade silenciosa, como quem acende uma vela por uma alma que talvez nem tenha morrido.


CAPÍTULO 7

Manutenção do Silêncio

O som do pano molhado contra o vidro era o mesmo de sempre, mas algo nele parecia mais arrastado. Como se até os objetos compartilhassem de um cansaço novo. Ele subia ao farol com regularidade, limpava os mecanismos, verificava as engrenagens, apertava os parafusos que pareciam ter se afrouxado com o sal e o tempo. Mas agora fazia tudo com um tipo de consciência que não existia antes — como quem acorda no meio de um sonho e percebe que não sabe mais por que está ali.

Havia algo inquietante na constância. A repetição, antes abrigo, começava a parecer cárcere. Cada degrau da escada agora tinha um som específico, e ele os reconhecia. Não pela memória, mas pelo tédio. Sabia o ponto exato em que a estrutura rangia, onde precisava apoiar mais o peso da perna direita, o momento em que a respiração acelerava. A previsibilidade, que durante anos foi sua proteção contra o caos, agora parecia zombar dele.

Durante a manutenção daquela manhã, deixou cair uma pequena chave de fenda. Bateu no chão com um som agudo e rolou para debaixo da mesa de ferramentas. Ele olhou, pensou em pegá-la, mas não se moveu. Ficou observando o objeto como se fosse um fragmento de dúvida materializado. Aquilo caiu. Está ali. Está fora do lugar. E tudo continua igual. A luz continua girando. O mar continua batendo. O mundo não parou. Ele ficou ali parado por longos minutos, e quando finalmente pegou a chave, já não era para colocá-la no lugar. Guardou-a no bolso. Como quem coleta símbolos e não ferramentas.

Desceu mais devagar que o usual. Parou no penúltimo degrau e olhou para a luz por entre as ripas da escada. Girava. Fiel. Incansável. Ele se perguntou — não pela primeira vez, mas agora com outra gravidade — para quem aquilo servia. Ainda havia navios? Ainda havia rotas? Ainda havia marinheiros que olhavam para aquele facho de luz como quem reencontra o caminho?

Ou ele era só um mecanismo antigo, preservado por inércia, como uma caixa de correio numa rua desabitada?

Ao voltar para casa, sentou-se na cadeira de madeira que usava há anos. Sentiu as lascas sob as mãos. Lembrou que prometera lixá-la um dia, mas nunca o fizera. Como tantas outras coisas que ficavam para depois e, no depois, se dissolviam. Olhou ao redor: o fogão, os pratos, os livros desbotados, a gaveta da carta. Tudo no lugar. Tudo em paz. Tudo estagnado.

Foi até a prateleira onde ficava o diário de bordo — um caderno com capa dura e couro ressecado, onde anotava as manutenções, o consumo de óleo, os horários de acendimento e desligamento da luz. Era exigência da Marinha. Mas ninguém pedia os registros há anos. Mesmo assim, ele escrevia.

Abriu o diário. Pegou a caneta. Escreveu:

E então parou. Ficou olhando para a página. Depois escreveu, abaixo, uma frase que não estava prevista no protocolo:

Fechou o caderno com cuidado, como quem encerra uma missa vazia. Caminhou até a porta e abriu. O vento soprou forte, como se tentasse levar alguma coisa embora. Ficou ali por um tempo, parado, com os pés firmes no chão e a mente em suspensão.

Pensou em parar. Só por um dia. Deixar o farol no escuro. Ver o que acontece. Mas não parou. Porque não era disso que se tratava. Não era sobre os navios, nem sobre os olhos que talvez ainda buscassem aquela luz em noites de neblina. Era sobre ele. Sobre o gesto. Sobre a permanência. Acender a luz, dia após dia, mesmo sem testemunhas, era talvez o único modo que encontrara de continuar sendo. Não por heroísmo, nem por fé — mas porque certas repetições são as únicas âncoras quando tudo o mais ameaça se dissolver.


CAPÍTULO 8

A Repartição do Peso

Ele acordou mais cedo do que o habitual, mas não por disposição. O corpo não doía, mas estava pesado — como se a noite tivesse se acumulado dentro dos músculos em vez de ter passado. Sentou-se na beira da cama com os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas, o olhar perdido no chão. Sabia o que vinha a seguir: o café, a porta, o farol, os degraus, a luz. Cada parte da manhã já vinha pronta, em ordem, como uma rotina embalada a vácuo. Mas naquele dia, algo nele hesitou. Não como quem esquece, mas como quem, por um instante, se pergunta se realmente precisa continuar.

Preparou o café sem atenção. Deixou o pó ferver por tempo demais, mexeu pouco, tomou devagar. Não lavou a caneca ao terminar. Deixou-a sobre a mesa, ainda com um resquício escuro no fundo, como se deixasse ali um protesto discreto contra a perfeição. Caminhou até a porta, mas não saiu. Permaneceu encostado no batente, olhando o farol à distância, e pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma espécie de ressentimento.

Não era contra o farol. Nem contra o mar. Nem contra a solidão. Era contra aquilo que se tornou dentro dele: um homem que nunca falha. Um corpo que sempre funciona. Um sistema de manutenção constante que ninguém reconhece, mas todo mundo espera que continue. Perguntou-se, sem ironia, se alguém em algum lugar sabia que ele estava ali. Se alguém contava com a luz ou se o giro da lâmpada era apenas uma teimosia dele mesmo. Mais do que isso: perguntou-se quantas vezes havia feito o que precisava sem nunca ter se perguntado se queria.

Pegou uma folha em branco do fundo de uma das gavetas. Não o caderno de registros, nem o de anotações técnicas. Uma folha solta, limpa, sem destino. Escreveu algumas linhas, quase sem pensar, mas sem pressa. Palavras duras, mas verdadeiras. Sobre cansaço, sobre ausência de escolha, sobre o tipo de obrigação que não se impõe com ordens, mas com silêncio. Não era uma carta para ninguém. Era uma espécie de desabafo íntimo, quase corporal.

Leu o que havia escrito. Não corrigiu. Nem rasgou. Apenas dobrou a folha e a guardou dentro de um livro antigo da estante, entre páginas que falavam de marés. Sabia que nunca mais a abriria. Mas também sabia que, de algum modo, ela precisava existir.

Subiu ao farol mais tarde do que o habitual. Os degraus estavam mais úmidos, talvez pelo vento da madrugada, ou talvez porque tudo nele estivesse, naquele dia, mais escorregadio. Limpou os vidros com mais força do que o necessário. Apertou os parafusos com raiva contida. Quando acionou o mecanismo, a luz hesitou por um segundo, como se percebesse a mudança de energia. Mas logo girou, regular, constante, indiferente.

Ao descer, não sentiu alívio. Mas também não sentiu culpa. Sentiu algo mais raro: consciência. Pela primeira vez, não estava apenas repetindo um rito, mas reconhecendo o peso de sustentá-lo. E esse reconhecimento, por si só, já era libertador.


CAPÍTULO 9

Tempestade

Começou com silêncio. Não o habitual, confortável, de todas as manhãs, mas um silêncio denso demais, exageradamente imóvel. O tipo de silêncio que precede o colapso. O mar, lá embaixo, estava inquieto, mas sem se mostrar. As ondas batiam com um intervalo estranho, irregular, como se algo as estivesse perturbando por dentro. O céu tinha o tom metálico de uma lâmina. Cinza sem nuances. Pesado, indeciso. As nuvens pareciam não se mover, apenas pesar sobre o mundo como um teto em ameaça de desabar.

Ele sentiu antes de ver. Um arrepio, uma rigidez no ar, o tipo de sensação que não vem dos sentidos, mas da pele que já viveu o bastante para saber. A tempestade estava vindo. Não uma qualquer — dessas que molham, assoviam e passam. Esta trazia um tipo diferente de presença. Como se fosse feita de mais do que água e vento. Como se carregasse consigo uma intenção.

Fechou as janelas com firmeza. Reforçou as trancas, empurrou um pedaço de madeira contra a porta como fazia em anos mais antigos, quando ainda se preparava para o imprevisível. Desceu até o porão da casa, onde mantinha caixas de mantimentos, ferramentas e objetos esquecidos. Procurou pelas lanternas, testou as pilhas, separou velas e fósforos, baldes e panos. Era um ritual que não fazia há muito tempo, mas os gestos voltaram com facilidade — como andar de bicicleta ou fugir de um passado que sempre encontra um jeito de voltar.

No fim da tarde, o vento chegou com fúria. Entrou pelas frestas como um invasor, sacudindo as paredes, empurrando a estrutura da casa com força suficiente para fazer os copos tilintarem no armário. A luz natural desapareceu rápido. Em questão de minutos, a escuridão tomou tudo, interrompida apenas pelos clarões erráticos dos relâmpagos. Cada flash revelava a sala em detalhes intensos: as cadeiras tremendo, a cortina se debatendo como um animal preso, o caderno sobre a mesa com as páginas virando sozinhas.

Ele sabia que precisava subir.

O farol não podia falhar. Mesmo que ninguém mais dependesse dele. Mesmo que não houvesse um único navio naquela costa. Não era sobre necessidade. Era sobre coerência. E ele nunca havia deixado a luz apagar por covardia.

Vestiu o casaco pesado, amarrou as botas com força, prendeu a lanterna ao cinto e saiu. A chuva o atingiu como se tivesse sido arremessada com raiva. Cada gota era uma pancada, cada rajada de vento uma luta contra o próprio corpo. Caminhar até o farol, que ficava a poucos metros da casa, exigiu esforço. O ar parecia mais denso, e o chão escorregadio ameaçava cada passo. O céu, acima, rugia com trovões que não soavam como trovões — soavam como lembranças gritando.

Ao entrar no farol, sentiu a estrutura vibrar. Não o suficiente para desabar, mas o bastante para parecer viva. A escada em espiral estava molhada, escura, mais perigosa que nunca. Ele subiu devagar, apoiando-se nas paredes, sentindo cada músculo se contrair. Lá em cima, a cúpula tremia. O vidro chovia por dentro. Havia uma rachadura. Pequena, mas nova. O farol, como ele, começava a dar sinais de cansaço.

Ligou o sistema de acendimento com as mãos trêmulas. O gerador hesitou. A luz piscou, lutou, e por um segundo que pareceu longo demais, quase não veio. Ele prendeu a respiração. Murmurou algo que poderia ter sido uma súplica ou apenas o nome de alguém que um dia foi importante. E então, finalmente, a luz girou.

Lenta. Teimosa. Presente.

Ficou ali, no topo, observando a escuridão ser cortada em intervalos. A tempestade rugia em torno do farol como um animal enfurecido. Mas a luz estava acesa. E ele também.

Naquela noite, não desceu. Sentou-se sobre a estrutura metálica, com o casaco encharcado colado ao corpo, e esperou. Esperou a madrugada. Esperou o fim. Esperou o que quer que viesse.

O farol resistiu. Ele também. Mas ao amanhecer, ainda com a roupa colada ao corpo e os ossos pesando mais do que lembrava ser possível, soube — sem dúvida, sem pressa — que algo havia mudado. Talvez o mundo não notasse. Talvez nem o mar percebesse. Mas ele sim. Porque a rachadura no vidro, pequena demais para ser notícia, era grande o suficiente para ser verdade. E toda verdade, mesmo a mais tênue, quando rompe o silêncio, já começa a transformar tudo.


CAPÍTULO 10

O Dia em que a Luz Não Girou

O dia amanheceu lento, arrastando nuvens como quem varre cacos de vidro de uma sala já vazia. A tempestade tinha passado, mas deixara para trás um tipo de silêncio mais profundo, como se até o vento estivesse cansado de soprar. O mar, por sua vez, seguia inquieto, com ondas menos violentas, porém desordenadas, como se ainda não tivesse reencontrado o próprio ritmo. Conseguiu chegar em casa, exausto. Dormiu quase o dia inteiro. Não por descuido, mas por não ter lutado contra o sono. O corpo havia decidido sozinho.

Quando acordou sentou-se na cama e ficou ali por um tempo que não soube medir. Não havia pressa, nem tarefas pendentes. Apenas o hábito. Ficou sentado, olhando o chão, sentindo o peso da roupa ainda úmida da noite anterior, o cheiro salgado ainda impregnado nas costuras. Respirou fundo. Estava inteiro, mas não igual.

Fez o café com movimentos automáticos. A água ferveu rápido demais, ou talvez ele tenha se distraído. Quando percebeu, o cheiro de queimado já rondava o fogão. Jogou a primeira água fora, recomeçou o processo com mais cuidado. Sentia-se como quem prepara um café para alguém que está prestes a ir embora — e não sabia se esse alguém era ele mesmo.

As horas foram passando e ele não subiu ao farol. Sabia que precisava, sabia que era hora de fazer a verificação, de checar os mecanismos, de preparar tudo para a noite. Mas permaneceu sentado. Primeiro à mesa. Depois no parapeito da porta. Em seguida, em pé, encostado na parede da frente da casa, olhando o farol à distância, como se o observasse pela primeira vez. Não havia nenhuma falha visível. A estrutura permanecia ereta, silenciosa, à espera. Mas o que mais o desconcertava era o fato de que ele não sentia culpa. Não ainda.

A tarde avançou e a luz do dia foi se inclinando para o dourado gasto do crepúsculo. E mesmo assim, ele não se moveu. Dentro dele, uma conversa silenciosa acontecia. Não havia rebeldia, nem rompante, nem raiva. Havia apenas uma espécie de questionamento mudo: e se hoje não? E se, por uma vez só, ele deixasse de ser o guardião do que ninguém mais observa?

O céu escureceu devagar, como se esperasse uma decisão. Mas nenhuma veio. O farol permaneceu apagado. O mecanismo não foi ativado. A luz não girou.

Ele jantou pouco, quase por obrigação. Sentiu a ausência do feixe de luz como se fosse um braço a menos, uma respiração que não completava o ciclo. Olhou pela janela diversas vezes, como quem espera um erro visível. Um barco perdido. Um grito. Um acidente. Mas não houve nada. O mundo, indiferente, seguiu seu curso.

Ainda assim, ao se deitar naquela noite, algo nele não o acompanhou. Havia deixado uma parte de si lá fora, em silêncio, junto com a ausência da luz. Não era culpa o que sentia, tampouco alívio. Era uma espécie de vertigem: a estranheza de perceber que o mundo segue mesmo quando a gente falha.

Virou-se para o lado esquerdo da cama, como sempre fazia. E apenas ali, com o corpo envolvido pelo peso da decisão, entendeu que aquele não tinha sido apenas o dia em que a luz não girou.

Tinha sido o dia em que ele deixou de girar com ela.


CAPÍTULO 11

Entre Ondas e Ossos

Foi no dia seguinte. Ou no outro. Não importava mais o tempo contado em datas. O calendário na parede já estava dois meses atrasado e, mesmo que virasse a folha, não adiantaria. O tempo ali era outro. Era contado em pausas. Em hesitações. Em dias em que a luz girava e em dias em que não. E agora, depois do que não girou, havia um ruído novo no ar, um leve desequilíbrio no chão. Como se o farol ainda estivesse de pé, mas com o centro de gravidade deslocado.

Ele acordou cedo, dessa vez sem esforço. O corpo parecia saber que algo o esperava. Não na casa. Não no topo. Mas embaixo. Lá onde as ondas se quebravam, onde os musgos cresciam nas pedras como pele antiga, onde o vento soprava diferente. Fazia anos que não descia até ali. Não por medo, mas por inutilidade. Não havia nada a fazer na base do rochedo. Nenhum conserto, nenhum reparo, nenhuma tarefa. Só o mar. Só os ossos do mundo.

Vestiu-se com mais cuidado. Calçou as botas pesadas, escolheu o casaco menos surrado, prendeu o capuz com firmeza. Levou uma lanterna, embora o dia estivesse claro. Algo nele sabia que, mesmo sob o sol, haveria sombras. E desceu.

O caminho era estreito, irregular, feito de terra úmida, pedras soltas e raízes tortas que surgiam do chão como dedos tentando agarrá-lo. Cada passo exigia atenção. Os músculos das pernas protestavam, desacostumados com a inclinação. Ele não se apressou. Descer tem outro tempo. É quase uma reverência. E havia algo naquela descida que pedia respeito. Ou talvez luto.

Ao chegar ao nível do mar, sentiu o impacto da maresia como um tapa de boas-vindas. O cheiro era forte, mais ácido do que lembrava. As pedras, cobertas de limo escuro, tornavam cada movimento uma coreografia entre equilíbrio e risco. O som das ondas era brutal ali embaixo, muito mais violento do que se ouvia do alto. Era um tambor constante, um coração que batia de fora para dentro.

Andou por entre as rochas como quem procura sem saber o quê. Parava às vezes, abaixava-se, tocava a superfície fria, olhava as marcas deixadas por mariscos, algas e o tempo. Viu pedaços de madeira antigos, uma garrafa quebrada, restos de redes, uma corda quase fossilizada. Tudo o que o mar devolve um dia. Tudo o que alguém, em algum momento, quis esquecer.

E então viu. Não sabia exatamente o que era. Parecia uma estrutura, meio enterrada, meio revelada — talvez um pedaço de barco, talvez uma ossada. Chegou mais perto. O coração acelerou, mas não por medo. Por reconhecimento. Aquilo era dele.

Ou tinha sido. Ou representava algo que ele havia deixado para trás e que, por algum capricho do mar, agora voltava.

Ajoelhou-se com dificuldade. Tocou a madeira úmida, os restos de metal, os fios enferrujados. Era impossível identificar exatamente o que fora aquilo. Mas ele sabia. Sabia do que se tratava. Era memória condensada. Um vestígio. Um espelho quebrado lançado à costa.

Sentou-se ali por um tempo longo demais para ser medido. O mar subia devagar, tocando seus pés, suas mãos. Não recuou. Deixou que a água o cercasse. O sal entrou pelas mangas, molhou o tecido, colou o casaco ao peito. E ele permaneceu. Respirando devagar. Permitindo-se ser tocado pela coisa mais viva que conhecia.

Quando decidiu voltar, o céu já estava mudando de cor. A subida foi mais lenta. As pernas mais pesadas. Mas havia algo diferente na forma como pisava. Um tipo de certeza. Um tipo de despedida.

Ao chegar à casa, não acendeu nenhuma luz. Tirou os sapatos, deixou o casaco pingando sobre a cadeira, e foi direto ao caderno sobre a mesa.

Escreveu apenas uma frase:

E, por algum motivo que não sabia explicar, dormiu melhor naquela noite do que em todas as outras dos últimos anos.


CAPÍTULO 12

O Último Relatório

O dia amanheceu claro, sem pressa, como se o próprio céu estivesse em suspenso, respirando com cuidado. A casa ainda cheirava a sal e roupa molhada. As botas secavam ao lado da porta, imóveis como se também tivessem dormido. Ele acordou antes da luz tocar o chão. Permaneceu deitado por alguns minutos, olhando o teto como quem estuda mapas invisíveis. Não havia urgência. Mas havia intenção.

Tomou o café em silêncio, dessa vez sem fazer a segunda caneca. A ausência tinha voltado a ser ausência. As visitas haviam partido, ou talvez ele simplesmente tivesse aceitado que nunca estiveram ali. Passou os dedos sobre a borda da xícara como se tocasse uma pele antiga. Pensou em descer até as pedras de novo, mas não havia mais o que procurar. O que havia para encontrar já fora encontrado — ou, ao menos, reconhecido.

Caminhou até o farol, mas não subiu. Olhou para a estrutura por alguns minutos, sem julgamentos. Era belo, ainda. E digno. Mesmo com a rachadura no vidro e o metal manchado pelo tempo, havia algo na firmeza daquela construção que lhe parecia mais humano do que qualquer conversa. Talvez fosse isso que o prendia ali: a dignidade silenciosa das coisas que continuam mesmo quando não há plateia.

Ao voltar para casa, sentou-se diante do caderno de registros. O mesmo de sempre. A capa de couro já mais escura nas bordas, com um pequeno rasgo no canto superior. Pegou a caneta com lentidão e, pela primeira vez em muitos dias, escreveu com caligrafia nítida. Não corrigiu. Não hesitou. Apenas escreveu.

Fechou o caderno com cuidado, como quem encerra um ciclo. Não havia tristeza. Colocou-o dentro de uma gaveta, junto com a carta nunca enviada, uma foto desbotada e um pequeno objeto de madeira que não lembrava mais de onde viera.

Não era um ritual de adeus. Era só um gesto simples de organização.

Naquela noite, não esperou escurecer completamente para acender a luz. Subiu ao farol antes do habitual, sem lanterna, sem ferramentas. Sentou-se por alguns minutos no topo, observando a costa, a curvatura da terra, o espaço onde o mar tocava o céu. Não havia barcos. Não havia nuvens. Não havia urgência.

Acendeu a luz.

Girou o mecanismo com as próprias mãos.

E ficou ali, até que a primeira faixa de luz cortasse a escuridão, como uma memória que insiste em voltar.


CAPÍTULO 13

Ainda Estou Aqui

O tempo voltou a seguir seu curso antigo, ou talvez apenas parecesse assim porque ele já não lutava contra os dias. Acordava, acendia o fogo, preparava o café, escrevia frases soltas no caderno agora mais íntimo do que técnico, subia ao farol, limpava o vidro com o pano de sempre, verificava os parafusos, observava o mar. Tudo com a mesma cadência, os mesmos gestos, a mesma presença. Mas por dentro, algo era diferente. Ele sabia. E isso bastava.

Já não esperava visitas. Nem vozes. Nem barcos. Nem bilhetes do passado. A vida deixara de ser expectativa. Era apenas presença. Às vezes dura, às vezes bela. Como o mar. Às vezes revolto, às vezes espelho. Havia encontrado uma forma de paz que não era alívio, mas consciência. Paz que sabia do peso, da sombra, das rachaduras — e que mesmo assim se mantinha.

As manhãs eram mais leves. As noites, mais curtas. Ou talvez fosse ele que já não medisse as horas como antes. O tempo havia se desfeito da obrigação de contar alguma coisa. Era só tempo. E ele era só alguém atravessando-o.

Numa tarde qualquer, enquanto trocava o pavio da lanterna reserva, ouviu passos fora de hora. Não os passos de outrora, que vinham de dentro. Eram de fora. Mais pesados, mais reais. Levantou-se devagar, saiu da casa, caminhou até o parapeito. Não havia ninguém. Nenhuma pegada. Nenhum vulto. Apenas o som do mar e uma leve brisa que tocava a pele como um sussurro. Sorriu. Não por achar que estava enlouquecendo, mas por saber que já não precisava explicar nada. Havia sons que só ele escutaria. E isso estava bem.

Voltou para dentro. Sentou-se à mesa. Abriu o caderno. Escreveu:

E então ficou um tempo olhando a frase. Três palavras que não diziam muito. Ou talvez dissessem tudo.

Levantou-se, deixou o caderno aberto, caminhou até o farol. Subiu os degraus devagar, não por cansaço, mas por respeito. Cada degrau era um rito. Cada passo, uma confirmação.

Ao chegar no topo, observou o horizonte por alguns minutos antes de acender a luz. A lente girou com um som quase musical. A faixa de luz cortou o céu sem pressa, atravessando o escuro como se quisesse lembrar a noite de que ela não estava sozinha.

Ali, com a mão apoiada na estrutura metálica, sentindo o leve tremor do farol em funcionamento, respirou fundo e, pela primeira vez em muito tempo, não desejou mais nada além da própria presença. Não esperava explicações, nem milagres, nem absolvições tardias. Apenas permanecia. E naquele gesto simples, de vigiar sem razão aparente, havia mais humanidade do que em todas as respostas que nunca chegaram.

Naquela noite, como em tantas outras, a luz girou em seu compasso silencioso, atravessando o escuro com a precisão de um velho ritual que ninguém mais celebra. Girou para o mar, talvez para barcos que já não existem, talvez apenas para o vazio. Mas ele sabia — e esse saber íntimo, sem testemunhas nem aplausos, era o que o mantinha de pé. Ainda estava ali. Não por obrigação, nem por saudade, mas porque era o que havia escolhido ser.


EPÍLOGO

Dizem que faróis não escolhem para quem brilham. Giram no escuro, lançando sua luz por cima de ondas, tempestades, ausências. Não perguntam se há alguém vendo. Não esperam reconhecimento. Apenas continuam. Porque essa é a natureza da vigília: acender, mesmo sem testemunhas.

Anos depois, quem passa por aquela costa ainda vê a luz. Intermitente, firme, obstinada. Alguns pescadores dizem que ali mora um velho. Outros, que o farol é automático, comandado à distância. Há também os que juram ter visto alguém na torre, imóvel, como uma estátua viva, vigiando o mar mesmo quando não há perigo.

Ninguém sabe seu nome. Nem se está vivo. Nem se algum dia realmente esteve.

Mas a luz... a luz continua.

E para aqueles que atravessam noites densas, com mapas desfeitos e motores cansados, ela é o que basta.

Não há sinal mais sincero do que uma luz que se recusa a apagar.